[showads ad=300]Para uma melhor compreensão, recomendo a leitura do post Games para o aprendizado e a retórica procedural.
Em 2014 foi lançado um game que causou muita conversa nos veículos especializados: This War of Mine. Ele é um jogo de gerenciamento de recursos, e as suas mecânicas não são inovadoras. O que gerou o buzz, foi a forma com que o jogador é estimulado com essas mecânicas.
Pra quem não sabe, This War of Mine é sobre sobreviver em uma cidade sitiada. É um jogo de guerra, mas ao invés de colocar o jogador na pele de um soldado herói, ele conta a história de três civis cujo único objetivo é o de continuarem vivos até a guerra acabar (o que parece nunca acontecer).
Para não morrer é preciso explorar a cidade durante a noite a procura de comida, água potável, remédios e outros itens que servirão para proteger a a casa, criar armas e aparelhos domésticos que o jogador usará durante o dia. E como na vida real, basta um tiro ou uma facada para que o personagem morra. Essa é a maior preocupação no início. Mas só no início.

O jogo se passa em uma cidade fictícia, e o jogador pode explorar várias localidades. Mas não logo de cara. No início poucos locais estão disponíveis e mais pontos são adicionados conforme o passar dos dias. Assim é também com as decisões que o jogador tem que tomar e as preocupações que precisa ter.
Nas primeiras invasões em busca de mantimentos, o jogador não precisa se preocupar muito: as casas costumam estar completamente abandonadas e os obstáculos são escombros e portas fechadas. Conforme o tempo vai passando, o jogador começa a encontrar locais habitados por pessoas armadas e o pior de tudo: pessoas desarmadas.
Em determinado momento o jogo pode (cada vez que um novo jogo é iniciado, os eventos são criados aleatoriamente, logo usar a palavra “pode” é a forma mais adequada descrever) apresentar um soldado insinuando que vai estuprar uma mulher indefesa em um supermercado. A decisão de lutar contra o soldado e salvar a mulher não é tão difícil moralmente: ele é o vilão e o jogador o mocinho. E assim é com vários outros NPCs violentos que aparecem na cidade.
Mas e se o jogador for confrontado com essa escolha: ao invadir uma casa, ele encontra um casal de idosos indefesos implorando para não serem roubados pois os medicamentos que eles tem (e que o jogador precisa) são muito importantes para mantê-los vivos. Nessa situação, o que é o correto? Quais os limites?

Esse é um dos pontos mais debatidos por quem jogou This War of Mine. Colin Campbell do blog Polygon usou esse trecho para dizer que o “esse jogo fará você se odiar”. Nos fóruns do jogo, a pergunta se alguém matou o casal, costuma gerar longas conversas com justificativas para ter sido feito ou não. E ainda existe um fato muito interessante sobre essa situação do jogo que é a desculpa que dá, quem pegou os remédios:
“Eu roubei, porque em outra oportunidade alguém vai aparecer, roubar e matar o casal. Eu roubei, mas os deixei vivos.”
E esse é um exemplo perfeito da Retórica Procedural desse jogo. Se emAnimal Crossing o procedimento forçava o jogador a agir daquela maneira para avançar no jogo (e acumular bens), e o contraste com os vizinhos de vida simples e felicidade plena traziam a tona a discussão que o game designer queria, em This War of Mine o processo é muito mais internalizado no jogador.
O procedimento é entrar nos locais e saquear sem ser pego (o que pode significar a morte). O debate (algo essencial para a retenção de uma idéia, o que acaba sendo parte do foco da retórica procedural) se dá quando o jogador tem que tomar decisões difíceis e cujos limites morais não estão bem definidos. E embora você possa dizer que o bem é o bem, e o mal é o mal em qualquer situação — e eu vá concordar — levar em conta que as decisões nem sempre são questões de pura lógica, deve ser lembrado. É muito mais sobre: “Existe uma situação onde eu tenha permissão pra fazer o mal? Tenho uma justificativa?”
E mesmo quando a lógica pode ser aplicada, como é que se medem o peso das coisas?
Como medir os seus atos, parça?

Quais os pontos que você vai trazer para fazer o julgamento dessa situação e escolher a forma com que você lida com ela?
É errado roubar, mas isso foi feito durante todo o jogo, sem uma culpa muito grande, afinal as vítimas do roubo eram pessoas violentas que e ameaçavam a vida do jogador. Logo, existem situações onde ser um ladrão é aceitável?
A desculpa já usada de que os idosos logo seriam mortos por algum ladrão, então é melhor “dar um bom destino” para os remédios é válida? Eles são mais frágeis e indefesos, e tem muito mais chances de morrer de doença nessa cidade má e sem ninguém pra ajudar. Logo, levar os remédios significa fazer um melhor uso?
E as melhores de todas as perguntas que consigo pensar (até agora, ao menos): Por que o jogador deve decidir isso? O que lhe dá esse poder?
Fazer um aluno experimentar essas situações e colocá-los para debater, é uma ótima forma de discutir ética, e a sua relação com o contexto do indivíduo: ele tem necessidades, ele tem dificuldades, ele tem poder? E como isso tudo afeta a mudança de sentimento dele ao perpetrar determinados atos?

Porque se o jogador acreditar (e a maioria faz, no jogo ao menos) que é aceitável entrar em uma casa vazia e roubar os itens porque o personagem está doente, com fome e vulnerável… Bem, isso não definiria uma boa parte das pessoas que cometem furtos residenciais? Logo, eles não devem ser presos pois o contexto em que estão inseridos serve como justificativa para os seus atos, não?
A intenção desse texto não é trazer essas questões para o debate, mas mostrar como um jogo comercial, pode ser levado para dentro da sala de aula (ou da lição de casa), e gerar aprendizado. Não apenas jogando (e eu acho muito ruim esse conceito de que um jogo deve gerar aprendizado por ele mesmo, sem debate. Afinal o feedback é essencial para se aprender — principalmente para se aprender com os erros — tornando a punição in gameinsuficiente), mas debatendo as decisões, o desempenho e os desdobramentos do game.
Escritor do post começa a pensar em outros games para citar e você não vai acreditar no que acontece no final

Existem outros games que estabelecem processos geradores de questionamentos e aprendizado: Papers Please ensina sobre o funcionamento da vigilância governamental e debate ética; O já citado (em outro post) Animal Crossingfalando sobre consumismo; E atéPoker (sim, o jogo de cartas) pode ser muito útil quando jogado de forma mais profunda para que se aprendam algumas coisas sobre negociação, interação e raciocínio. Ele não é um jogo de sorte (apenas), e sim de muita estratégia.
Então fica a sugestão pra quem tiver uma turma de ética. Se você conhece algum outro jogo bacana, com uma mecânica que ensina algo, e que seja bom para propor um debate em sala de aula, diga nos comentários. Ficarei muito contente em conversar com você sobre isso. =)
Muito bom artigo! Parabéns!
Muito obrigado! =)